ADVOCACIA PÚBLICA MUNICIPAL INDEPENDENTE
Filipe Schitino[1]
Indispensável a defesa do interesse público estatal, a advocacia pública brasileira se faz presente nos artigos 131 e 132 da Constituição Federal de 1988[2], outorgando tal incumbência a Advocacia-Geral da União e Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, órgãos que atuam na representação judicial e extrajudicial da União, Estados e Distrito Federal, desempenhando a missão de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo, diretamente ou por meio de órgãos vinculados da administração indireta – procuradorias autárquicas federais e estaduais – agências autárquicas e de controle da prestação dos serviços públicos por parte das concessionárias e permissionárias (agências reguladoras e agências executivas) – essenciais aos ditames do Estado Democrático de Direito.
Cabe observar, no entanto, a existência de um vasto arcabouço jurídico disciplinando a atuação dos membros da advocacia pública federal e estadual, através da Lei Complementar n° 73/93 na esfera federal, Leis Orgânicas Estaduais e Leis Orgânicas das Agências Reguladoras (art. 14 caput da Lei n° 9.984/2000, art. 56 do Decreto Presidencial n° 2.338/1997, art. 11 caput do Decreto Presidencial n° 2.335/97, art. 10, III do Decreto Presidencial n° 2.455/1998, art. 15 do Decreto Presidencial n° 3.327/2000 e art. 21 do Decreto Presidencial n° 3.029/1999), bem como os demais atos normativos atinentes a matéria, ratificando-se a institucionalização dos órgãos jurídicos na defesa judicial, consultoria e controle interno de legalidade dos atos da administração pública, com ingresso nos quadros mediante aprovação em concurso público de provas e títulos, assegurada a progressão funcional na carreira.
Por outro lado, os cargos de chefia da instituição são preenchidos por livre nomeação do chefe do Poder Executivo, adotando-se os critérios de idade (maior de 35 anos), de notável saber jurídico (conceito vago e criticado pelos estudiosos) e reputação ilibada, escolhidos hierarquicamente entre os integrantes das classes finais da carreira (alguns Estados adotam este critério). O Presidente da República escolhe livremente o Advogado-Geral da União, a qual assume as funções diretivas do órgão, despacha junto ao Presidente da República, representa a União junto ao Supremo Tribunal Federal, defende as Ações Diretas de Inconstitucionalidade, no que tange a lei ou ato normativo contestado. Desiste, transige e firma compromisso nas ações de interesse da União nos termos da lei, assessora o Presidente da República, elaborando pareceres e estudos, propondo normas, medidas e diretrizes, atua no controle interno de legalidade dos atos da administração pública, sugerindo medidas de caráter jurídico reclamadas pelo interesse público.
A ordem jurídica vigente assegura ao órgão a interpretação da Constituição, das leis, tratados e demais atos normativos, conferindo a interpretação uniforme a ser adotada pelos demais órgãos da Administração Pública, garantindo a correta aplicação das leis e unificando a jurisprudência administrativa, podendo, inclusive, editar súmulas administrativas, editando resoluções e instruções.
Neste contexto, lamentavelmente, o poder constituinte originário omitiu-se na menção as atribuições e organização da advocacia pública nos municípios brasileiros, acarretando, com esta lacuna aberta pelo legislador constituinte – além da ineficiência dos serviços prestados – distorções graves que colocam em risco a independência funcional dos seus membros que deveriam atuar na defesa intransigente da legalidade e moralidade da administração, zelando pelo interesse público.
Cumpre assinalar que o único dispositivo de lei federal que versa sobre a atribuição do Procurador Municipal (art. 12, inciso II do CPC[3]), ou seja, a representação em juízo, ativa e passivamente, do município não tem, por óbvio, o condão de disciplinar a atuação de todo o órgão, carecendo muitas Leis Orgânicas Municipais de regulamentação e organização por leis locais, das missões institucionais da advocacia pública nos municípios.
Cabe aqui questionar a conduta omissiva dos agentes políticos locais de não regulamentação, valorização e organização da advocacia pública municipal de carreira sob os auspícios da impessoalidade e da independência funcional dos membros em virtude de práticas proselitistas e de lamentáveis apadrinhamentos dos nomeados ao desempenho das funções públicas vitais, prejudicando, sobremaneira, o cumprimento do disposto no artigo 37 caput da Constituição na esfera da Administração Pública, tendo em vista a demissibilidade, muitas vezes, “ad nutum” dos profissionais do Direito submetidos a tal prática em face da ausência de estabilidade no cargo, adquirida após aprovação em estágio probatório, mediante investidura originaria por concurso público, bem como a possibilidade de sofrer um processo de manipulação e represálias em caso de indeferimento e não atendimento dos propósitos deste ou daquele governo investido temporariamente no Poder.
É fácil ver a tamanha distorção na composição e funcionamento das procuradorias municipais brasileiras – muitas instituições, mormente, de municípios pequenos – com problemas estruturais gravíssimos e de pessoal de apoio qualificado ao desempenho das funções estatais de defesa da legalidade, moralidade, interesse público e controle interno da administração, optando o chefe do Poder Executivo, na maioria dos casos, pela contratação de profissionais do Direito sem concurso público – observando o favoritismo político na escolha – valendo-se, também, da contratação direta de escritórios de advocacia para patrocinar juridicamente os interesses do município, gerando inúmeras controvérsias e discussões judiciais acerca de possível ato, em tese, de improbidade administrativa nos termos do artigo 10, inciso VIII da Lei n° 8.429/92 – dispensa indevida de licitação – e a responsabilidade penal do agente público na conduta tipificada do artigo 89 da Lei n° 8.666/93.
No mesmo sentido a novel jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça flexibilizou as sanções decorrentes de contratação direta indevida, entendendo-se pela impossibilidade de punição do agente público no caso de ausência de elemento subjetivo (dolo) e de resultado danoso ao patrimônio público, reconhecendo, todavia, a não caracterização de improbidade administrativa em face de escritório de advocacia de renomada especialização técnica (v. REsp 1.103.280-MG, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 16/4/2009, inf. n° 390 – REsp 875163/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/05/2009, DJe 01/07/2009 – REsp 764.956/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/04/2008, DJe 07/05/2008 – APN 261-PB, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ de 05.12.2005).
Neste cenário, tendo em vista a magnitude dos preceitos informadores da advocacia pública no Brasil, previstos nos artigos 131 e 132 da Constituição Federal e as prerrogativas conferidas aos advogados públicos, é preciso assegurar uma estrutura organizacional razoável, apta a cumprir com as finalidades legais, criando-se, além do cargo de Procurador-Geral do Município (livre nomeação e exoneração na forma do artigo 37, II da CF/88), cargos de provimento efetivo de procuradores especialistas na área trabalhista, tributária/dívida ativa, previdenciária, serviços públicos, patrimônio público/moralidade administrativa, execução orçamentária e de pessoal, que atuarão no contencioso judicial e administrativo.
Dentro da estrutura ideal, do ponto vista em estudo, objetivando a prestação eficiente dos serviços públicos na administração municipal, sugiro a criação de cargos de assistentes jurídicos (de provimento efetivo) que auxiliarão os procuradores municipais no mister desempenhado. A Consultoria Jurídica do Município, órgão com subordinação direta ao Procurador-Geral do Município, atuará junto aos Secretários Municipais e diretores de autarquias e fundações, elaborando estudos e informações por solicitação das autoridades, dirimindo questões administrativas através de parecer com visto do respectivo procurador municipal na escala hierárquica, em respeito à natureza do ato administrativo composto, consagrado pela doutrina.
A edição de Regimento Interno organizará o funcionamento do órgão, disciplinando a tramitação dos procedimentos administrativos, dirimindo-se questões de ordem prática dentro do órgão e regulando a atuação dos membros e servidores de apoio, bem como as hipóteses de suspeição e impedimento de atuação nos processos judiciais e administrativos.
Anotadas tais assertivas, concluo pela reflexão do sistema proposto neste estudo com escopo de assegurar ao cidadão, destinatário dos serviços públicos, uma advocacia pública municipal de carreira, valorizada, independente e livre de ingerências políticas espúrias, na defesa da ordem jurídica em prol da população, na correta aplicação da ação regressiva em face dos servidores públicos, agentes causadores do dano à administração na forma do artigo 37, § 6° da Constituição de 1988, pugnando, todavia, em nome da moralidade administrativa e do interesse público nos pleitos formulados em ações populares e de improbidade administrativa, conforme disposto nos artigos 6°, § 3° da Lei n° 4.717/65[4], 17 caput e § 3° da Lei n° 8.429/1992[5], contra eventuais desvios éticos dos agentes públicos, lesivos a moralidade e o erário.
Informações Bibliográficas
MELLO, Filipe Schitino Silva de. Advocacia Municipal Independente. Blog Advogado Filipe Schitino, Nova Friburgo, ano 2009. Disponível em: http://advogadofilipeschitino.blogspot.com/
[1] Advogado militante na cidade de Nova Friburgo/RJ. Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes/Nova Friburgo.
[2] Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
§ 1º - A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
§ 2º - O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos.
§ 3º - Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.
Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Parágrafo único. Aos procuradores referidos neste artigo é assegurada estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
[3] Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:
(...)
II - o Município, por seu Prefeito ou procurador;
[4] Art. 6º A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.
(...)
§ 3º A pessoas jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se de contestar o pedido, ou poderá atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente.
[5] Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.
(...)
§ 3o No caso de a ação principal ter sido proposta pelo Ministério Público, aplica-se, no que couber, o disposto no § 3o do art. 6o da Lei no 4.717, de 29 de junho de 1965. (Redação dada pela Lei nº 9.366, de 1996)