SÚMULA 378 DO STJ E O DESVIO DE FUNÇÃO DO SERVIDOR NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Filipe Schitino[1]

Situação Hipotética:

1) O servidor recém-empossado no cargo de provimento efetivo de Agente Administrativo foi surpreendido por determinação do superior hierárquico para exercer a função de Fiscal de Posturas em face da carência de profissionais da classe em questão nos quadros da Administração Pública.

2) Servidora empossada no cargo de provimento efetivo de Professor – Classe I, mediante aprovação em Concurso Público, desempenha funções típicas do cargo de Professor – Classe II, pagando, a administração, os vencimentos da função correspondente a de Professor Classe I, remuneração inferior ao cargo desempenhado.

Essas situações jurídicas descritas no exemplo introdutório do presente artigo, caracterizam, sem dúvida, o desvio de função pública que consiste no desempenhar de funções de caráter permanente dentro da administração pública, não correspondentes ao cargo originário do servidor, ocupado de forma ilícita, sem aprovação em concurso público.

O legislador constituinte de 1988 fortaleceu o princípio de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos na forma do artigo 37, II, para ingresso nos quadros de servidores dos Poderes da República, excepcionando tal principio em face do preenchimento dos cargos em comissão e funções de confiança, conforme disposto no artigo 37, V, de livre nomeação e exoneração, destinados as funções de direção, chefia e assessoramento dos agentes políticos mais graduados, por critério de lealdade e comprometimento político com as funções desempenhadas pela autoridade superior.

A douta jurisprudência pátria, preocupada com as graves distorções impingidas pelos administradores públicos com a finalidade de legitimar eventuais situações ilegais de favorecimento ou prejuízo aos servidores atingidos – servidores concursados e que não foram empossados em benefício aos “desviados de função” pertencentes ao quadro – determina a Administração Pública o pagamento das diferenças remuneratórias por todo o período de desempenho do cargo em desvio, sob pena de locupletamento ilícito da Administração Pública.

Isso significa, todavia, que, na ocorrência das hipóteses caracterizadoras do desvio de função pública do servidor, o administrador cometerá, com a garantia do pagamento das diferenças de vencimentos assegurada por interpretação jurisprudencial, danos ao erário, afirmando-se que, em muitos casos, tal administrador atua divorciado dos princípios da moralidade, impessoalidade e interesse público, na implementação dolosa da política de incentivo a prática abusiva, com finalidades protecionistas e paternalistas aos servidores beneficiados, merecendo, por conseqüência, as sanções previstas na Lei n° 8.429/1992 (Atos de Improbidade Administrativa).

Sendo assim, antes de adentrarmos os contornos jurisprudênciais de regência do tema em debate, interessante abordar os conceitos administrativos sobre servidores públicos, sustentados pela doutrina[2]:

Cargo Público

“É o lugar instituído na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades especificas e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida em lei.”

Função Pública

“É a atribuição ou o conjunto de atribuições que a Administração confere a cada categoria profissional ou comete individualmente a determinados servidores para a execução de serviços eventuais, sendo comumente remunerada através de pro labore.”

Classe

“É o agrupamento de cargos da mesma profissão, e com idênticas atribuições, responsabilidades e vencimentos. As classes constituem os degraus de acesso na carreira.”

Carreira

“É o agrupamento de classes da mesma profissão ou atividade, escalonadas segundo a hierarquia do serviço, para acesso privativo dos titulares dos cargos que a integram, mediante provimento originário. O conjunto de carreiras e de cargos isolados constitui o quadro permanente do serviço dos diversos Poderes e órgãos da Administração Pública. As carreiras iniciam-se e terminam nos respectivos quadros.”

Parece certo, após a leitura dos exemplos mencionados no intróito do presente artigo, abordando-se os conceitos doutrinários supramencionados, que ocorre desvio de função, comumente, no preenchimento indevido dos cargos “desviados” por servidores beneficiados, desrespeitando-se o sistema de organização por classes que servem, dentro do serviço público, como degrau para justa progressão dos servidores de carreira nos quadros de administração, ferindo-se de morte os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência (art. 37, caput da CF).

Neste contexto, assevera a Súmula 378 do Superior Tribunal de Justiça:

“Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes (Súmula 378, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/04/2009, DJe 05/05/2009)”.

A súmula do Tribunal de Superposição agasalha a teoria civilista da restituição em sede de enriquecimento sem causa, inspirada no Código Civil Alemão – BGB e Código Suíço das Obrigações, sob a ótica do enriquecimento indevido estabelecido no Código Italiano de 1942 o manejo da ação geral de enriquecimento “no sentido de que é cabível somente quando o prejudicado não tem outra, de ressarcimento direto e não exista norma expressa.”[3], aplicando-se a regra aos institutos e princípios do Direito Administrativo em matéria de servidores públicos, assinalando a inexistência de previsão legal de garantia ao presente pagamento das diferenças decorrentes entre o cargo efetivo e os vencimentos percebidos no exercício da função pública “desviada”.

Mais do que isto, cumpre advertir que a jurisprudência protege, neste tema, o princípio da dignidade da pessoa do trabalhador em face da inadmissibilidade de trabalho gratuito, eis que as relações trabalhistas são regidas pela onerosidade (AgRg no Resp n° 396.704-RS, Rel. Min. Laurita Vaz).

Vê-se, entretanto, que a construção jurisprudencial não autorizou o reenquadramento do servidor “desviado” de função, ou seja, enquadrá-lo na respectiva carreira exercida de forma irregular, em respeito ao principio constitucional do concurso público (art. 37, II da CF) para ingresso na Administração Pública.

Tal como informa os precedentes em estudo, as diferenças pagas ao servidor em tema de desvio de função no seio da administração, se afiguram como obrigações de trato sucessivo, com prestações e renovações periódicas mensais, permanecendo o fundo de direito, através do processo de renovação das prestações, traduzindo-se como “expressão utilizada para significar que o direito de ser funcionário (situação jurídica fundamental) ou os direitos a modificações que se admitem com relação a esta situação jurídica fundamental, como reclassificações, reenquadramentos, direito a adicionais por tempo de serviço, direito a gratificação por prestação de serviço especial, etc.” (v. voto do Min. Moreira Alves - RE nº 110.419/SP, Relator Ministro Octávio Gallotti, in DJ 22/9/89, colacionado na decisão monocrática do Agravo 767784 no STJ, Relatoria do Ministro Hamilton Carvalhido – DJ 29/06/2006).

No mesmo diapasão, assevera a jurisprudência em destaque:

“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DESVIO DE FUNÇÃO. DIFERENÇAS SALARIAIS. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. FUNDO DE DIREITO. Em se tratando de ação proposta por servidor para obter diferenças salariais decorrentes de desvio de função, a prescrição alcança apenas as parcelas vencidas há mais de cinco anos, contados do ajuizamento da ação. (Súmula 85/STJ). Recurso conhecido e provido.” (Resp 266.787/MG, Rel. FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJ 15/4/02)

Por isso mesmo, as prestações periódicas nas obrigações de trato sucessivo sobre as diferenças salariais devidas ao servidor, bem como a permanência do fundo de direito, configuram-se como marco regulatório do prazo prescricional quinquenal para propositura da ação judicial nos termos do Decreto n° 20.910/32:

“Art. 1° - As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for à natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.”

“Art. 3° - Quando o pagamento se dividir por dias, meses ou anos, a prescrição atingirá progressivamente as prestações, à medida que completarem os prazos estabelecidos pelo presente decreto.”

Como se pode constatar no exame das obrigações de trato sucessivo em matéria de vencimentos pretéritos devidos pela Administração na hipótese de desvio de função do servidor, ocorre à incidência de juros de mora nas prestações em questão, adotando-se o patamar de seis por cento ao ano, conforme disposto no artigo 1°-F da Medida Provisória n° 2.180-35/01, modificativa da Lei n° 9.494/97:

“Art. 1°-F. Os juros de mora, nas condenações impostas à Fazenda Pública para pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados públicos, não poderão ultrapassar o percentual de seis por cento ao ano”.

Frente às razões ora sustentadas neste artigo, à luz do ordenamento jurídico vigente em tema de aplicabilidade da Súmula n° 378 do Egrégio Superior Tribunal de Justiça na hipótese de desvio de função do servidor na Administração Pública, conclui-se:

a) Tal prática em benefício dos servidores contemplados, desrespeita o sistema de organização por classes de profissões do serviço público, impedindo a progressão funcional na carreira nos quadros da administração;

b) O servidor não tem direito ao reenquadramento de carreira, diante da flagrante violação ao princípio constitucional de aprovação em concurso público, estabelecido no artigo 37, II da CF, para desempenhar novas funções públicas, de caráter permanente, nos respectivos quadros dos órgãos públicos;

c) Caberá a administração corrigir a distorção anulando os atos ilegais de designação dos servidores “desviados” de função nos termos da autotutela administrativa, consagrado através da Súmula n° 473 do Supremo Tribunal Federal, sob pena de sofrer as sanções decorrentes dos atos de improbidade administrativa, nos termos da Lei n° 8.429/92;

d) O servidor faz jus às diferenças salariais existentes entre os vencimentos do cargo efetivo e os do cargo exercido de fato, sob pena de enriquecimento sem causa da administração em respeito aos preceitos da dignidade da pessoa do trabalho e da onerosidade nas relações trabalhistas, sendo vedado o desempenho de atividades gratuitamente no serviço público;

e) Prescreve em cinco anos a ação judicial proposta por servidor para obtenção do pagamento das diferenças salariais em decorrência do desvio de função, alcançando o instituto as parcelas vencidas no período superior do prazo prescricional (há mais de cinco anos), contados do ajuizamento da ação (Decreto n° 20.910/32 e Súmula 85 do STJ);

f) Os juros de mora incidem no pagamento das verbas devidas, não podendo ultrapassar o percentual de seis por cento ao ano, nos termos do artigo 1°-F da Lei n° 9.494/97.

Informações Bibliográficas

[1] Advogado militante na cidade de Nova Friburgo/RJ. Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes/Nova Friburgo.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2000, pág. 380-381.

[3] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 19ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, pág. 184.

MELLO, Filipe Schitino Silva de. Súmula 378 do STJ e o Desvio de Função do Servidor na Administração Pública. Blog Advogado Filipe Schitino, Nova Friburgo, ano 2009. Disponível em: <http://advogadofilipeschitino.blogspot.com/>

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