PGR pede constitucionalidade de lei fluminense que institui cotas nas universidades estaduais

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ADPF afirma constitucionalidade das políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino público superior no Brasil

O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, ajuizou arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 199) no Supremo Tribunal Federal (STF), com pedido de medida cautelar, para declarar a constitucionalidade da Lei 5.346/08, do estado do Rio de Janeiro, que dispõe sobre o novo sistema de cotas para ingresso nas universidades estaduais. Caso a Corte entenda improcedente o pedido, o PGR pede que seja invalidada decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) que suspendeu a eficácia da lei fluminense, proferida na Representação por Inconstitucionalidade 09/2009.

A referida lei institui o sistema de cotas para estudantes negros e indígenas (20%), alunos da rede pública de ensino (20%), pessoas portadoras de deficiência e filhos de policiais civis e militares, bombeiros e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço (5%). A lei admite a adoção do sistema de auto-declaração para negros e pessoas integrantes de minorias étnicas, cabendo à universidade criar mecanismos de combate à fraude. Também está previsto o pagamento de bolsa-auxílio durante o período do curso universitário dos estudantes carentes destinatários da ação afirmativa.

De acordo com a ADPF elaborada pela vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, o estado do Rio de Janeiro foi pioneiro no país na questão de políticas de ação afirmativa no ensino público superior, com resultados extremamente positivos, ampliando o acesso à universidade pública de estudantes de camadas excluídas da população e pluralizando, com isso, o corpo discente dessas instituições, sem qualquer prejuízo para a qualidade do ensino ou para o rendimento dos alunos. Segundo informa, nesse período, não se percebeu no estado qualquer agravamento de tensão ou animosidade social ou racial que possa ser correlacionado, direta ou indiretamente, com as medidas de democratização do ensino público superior.

Decisão estadual – Segundo explica, a lei substituiu o anterior sistema de cotas das universidades estaduais (Lei 4.151/03) e foi impugnada no TJ/RJ, através da Representação de Inconstitucionalidade 09/2009, que postulou a declaração de inconstitucionalidade, em face da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, de toda a Lei Estadual 5.346/08. Mas, de acordo com Deborah Duprat, foram questionadas apenas as cotas étnicas, que criaram reserva de vagas em favor de negros e indígenas.

Para ela, o autor da representação argumenta sobre normas e valores hospedados na Constituição Federal, notadamente o princípio da isonomia, a vedação de discriminações raciais, o acesso igualitário ao ensino e a proteção à segurança jurídica.

Ao apreciar questão de ordem suscitada pelo estado do Rio de Janeiro, o TJ/RJ atribuiu eficácia ex nunc (não retroativa) à medida cautelar concedida em maio de 2009, para excluir da sua incidência o vestibular em curso das universidades mantidas pelo estado. Com a decisão, diversas entidades da sociedade civil e do movimento negro encaminharam à Procuradoria Geral da República representação pedindo a propositura de ADPF no STF, “a fim de garantir a manutenção e permanência das políticas de ações afirmativas já adotadas e bem sucedidas pela Uerj e demais instituições de ensino público do Brasil”.

Insegurança - Para a vice-procuradora-geral, a decisão do TJ/RJ, apesar de ser inaplicável ao vestibular que ainda está em curso, é um verdadeiro convite à judicialização para os candidatos que se sentirem prejudicados com a política de ação afirmativa em discussão, pois sinaliza que, no âmbito daquela Corte, será praticamente certo o êxito, em eventuais impugnações aos resultados do certame. “Por outro lado, gera grave insegurança para todo o universo de beneficiários das cotas instituídas pelo legislador fluminense”, afirma. Ela pede a concessão de medida cautelar para, até o julgamento definitivo da ação, sustar os efeitos da decisão do TJ/RJ.

Deborah Duprat informa que o STF discute no momento a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa no campo da educação superior em várias ações e que houve convocação de audiência pública para discussão do tema, a ser realizada nos dias 3 a 5 de março de 2010. Nesse quadro, para ela, nada justifica que o TJ/RJ se antecipe à iminente decisão do STF sobre o tema, sobretudo quando se percebe a inclinação da Corte Estadual no sentido de invalidar a decisão do legislador fluminense, que vem se esforçando por concretizar, no campo da educação superior, os mandamentos constitucionais de promoção da igualdade material e do pluralismo.

Na ADPF, os argumentos no sentido da constitucionalidade da Lei 5.346/08 são os seguintes:

Igualdade – Para a autora da ADPF, o princípio da igualdade, tal como concebido no sistema constitucional brasileiro, não só é compatível, como, em determinadas situações, até reclama a promoção de políticas de ação afirmativa, para superação de desigualdades profundamente entrincheiradas nas nossas práticas sociais e instituições. De acordo com ela, o art. 3º, inciso IV, da Constituição, ao vedar os preconceitos de “raça, sexo, cor, idade, e outras formas de discriminação”, não pode ser visto como um empecilho para a instituição de medidas que favoreçam os grupos e segmentos que são costumeiramente discriminados, ainda que tais medidas adotam como fator de desigualação qualquer destes critérios.

Normativa internacional – Segundo a vice-procuradora-geral, o Brasil é signatário de diversos tratados internacionais, devidamente incorporados ao nosso ordenamento, que são expressos no reconhecimento da validade da promoção de políticas de ação afirmativa com o objetivo de promoção da igualdade. É o caso da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial.

Igualdade substantiva – Outro argumento que levanta em favor da constitucionalidade das políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior é o de que se trata de promoção da igualdade substantiva, objetivo fundamental no contexto de um Estado Social, e de uma sociedade que se pretende justa e solidária. “As provas de vestibular favorecem aqueles que estudaram nas melhores escolas – no Brasil, quase que invariavelmente privadas – que são caras, e portanto, inacessíveis aos membros dos grupos desprivilegiados, compostos majoritariamente pelos afrodescendentes”, informa.

Outros – Deborah Duprat cita ainda como justificativas relevantes: a promoção do pluralismo, considerando que, em um país que tem como uma das suas maiores riquezas a diversidade étnica e cultural, é preciso que haja um contato real e paritário entre pessoas de diferentes etnias e egressas de variadas realidades sociais; a justiça compensatória, sobretudo em relação aos candidatos negros e com deficiência; e a razoabilidade na alocação dos recursos públicos, que não pode prescindir de considerações sobre os destinatários finais dos gastos estatais, o que justifica a busca de critérios que visem a favorecer os grupos tradicionalmente excluídos do acesso às universidades públicas.

A ADPF refuta ainda argumentos frequentemente invocados contra as políticas de ação afirmativa nas universidades públicas:

Meritocracia – Esclarece que o sistema meritocrático prevê que “o acesso aos níveis mais elevados de ensino” devem se dar de acordo com a “capacidade de cada um”. Para ela, o raciocínio só seria válido se elementos como a pobreza, a péssima qualidade do ensino público fundamental e médio, o preconceito e desigualdade racial e as barreiras existentes para as pessoas com deficiência não contaminassem profundamente os procedimentos ditos meritocráticos, como os concursos de vestibular, desigualando as oportunidades dos concorrentes.

Melhoria no ensino fundamental – Para Deborah Duprat, o argumento de que não caberia a doação de políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior, uma vez que a solução para a inclusão no ensino estaria na melhoria dos seus níveis inferiores, padece de vício lógico, já que as propostas não são incompatíveis, mas antes se reforçam mutuamente. Segundo explica, melhorar a qualidade do ensino básico não exclui a necessidade de também atuar no âmbito do ensino superior.

Auto-declaração - A autora da ADPF defende ainda a auto-declaração como critério de seleção dos beneficiários das cotas étnicas como fórmula razoável, diante das alternativas existentes. “Parece inequívoco que as classificações raciais devem incorporar a ideia de auto-declaração, seja porque ignorar a percepção que cada um tem da própria identidade seria uma violência, atentatória à própria dignidade da pessoa humana, seja porque o critério encontra-se previsto no art. 1º, item 1, alínea 'a' da Convenção 169 da OIT, em vigor no ordenamento brasileiro”, defende.

Princípio da proporcionalidade – Para ela, as cotas instituídas na Lei 5.346/08 não ofendem a nenhum dos subprincípios em que se desdobra o princípio da proporcionalidade. Em sentido estrito, de acordo com Deborah Duprat, cumpre atentar para o valor que tem o ingresso no ensino superior na emancipação real dos excluídos no Brasil. “A admissão em boas universidades talvez seja a mais importante porta de acesso a funções socialmente relevantes, que propiciam o empoderamento das minorias estigmatizadas e a promoção da justiça material”.

Ela considera que as restrições a outros bens jurídicos acarretadas pela medida não são tão intensas, já que mais da metade (55%) das vagas das universidades públicais estaduais fluminenses permanece aberta à disputa em igualdade formal de condições. “E os percentuais das cotas não são tão elevados, considerando-se o quadro empírico subjacente”, conclui.
O relator da ação no STF é o ministro Cezar Peluso.

FONTE: PGR/MPF

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